Por: Rafell Carneiro
Hippie, aos 30 anos de idade, negro, cabelos cacheados, olhos escuros e roupas simples. Assim ele se apresenta, quase que anônimo em meio a tantos rostos que circulam pela Praça Rui Barbosa todos os dias. Por quantos preconceitos passou, já perdeu a conta. O que esconderia em seu sorriso?
A admiração me percorreu a alma ao observar seus trabalhos expostos à venda na praça, colares e pulseiras feitas apenas com sementes e cordas, verdadeiras esculturas de bambu e durepox. Em sua sacola, pedras das mais variadas formas e em seu rosto, histórias a contar.
Davi, que já foi artista circense, dá alfinetadas no mundo capitalista, diz coisas que surpreendem a todos, mostra sua força e sua visão completamente diferente de encarar a vida.
Despojado, olha as pessoas que entram e saem das casas, enquanto ele dorme na rua, sem endereço. Seu sobrenome permanece no mistério. Um passado não escrito, um futuro incerto, mas uma convicção. Qual seria? É o que vamos descobrir agora nesta entrevista feita sem roteiros ou formalidades em um simples bate-papo.
1)Vendo agora seus trabalhos, me vem perguntas à mente, como você classificaria a sua arte? Qual é sua fonte de inspiração para criá-los?
“Eu viajo por vários lugares do Brasil, conheço pessoas, vejo as coisas, saca? Conheço Acre, Roraima, Tocantins, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, aprendo as coisas e crio tudo sozinho, imagino, invento, é tudo no improviso e no sentimento. Isso aqui, isso é arte brasileira mesmo, nacional, é cultura, pena que não é todo mundo que sabe valorizar.”
2)E o que você tem aprendido por aí nessas viagens, conhecendo quase o Brasil inteiro?
“Inteiro não, porque o Brasil é muito grande, sabe. A gente vai acabar morrendo e não vamos adquirir o tanto de conhecimento que a terra tem para nos proporcionar. Porque...ainda mais esse mundo de hoje não é? Que são outros propósitos, entende? Mas se você viaja, consegue um aprendizado ainda maior, uma visão de identidade que quem está parado não é capaz de entender. Sua visão de mundo é outra. O que você quer buscar você tem que ter um propósito para conseguir.”
3) E qual é o seu propósito?
“O meu é o conhecimento. E quando chegar minha hora de partir, vou deixar tudo para nossa “mãe”, que é essa maravilha que nos dá tudo.”
4)Pelo que entendi, você se refere à “Mãe Terra”, certo? Qual seria o significado dessa simbologia?
“Chamo de “mãe” porque a terra representa a vida. Tudo o que se planta nasce, cresce, reproduz e morre. Somos filhos da terra porque nascemos aqui, precisamos dela para nos alimentar e assim que morremos, perdemos essa carne e retornamos a ela, é um ciclo. Não há nem bem nem mal. É natural.”
5)Então na sua concepção, o ser humano é como um animal?
“Exatamente. Isso aqui é o Jardim do Éden que o ser humano não soube cuidar. A diferença é que nós temos o conhecimento, a razão. Achamos que somos melhores que os animais e, por conta disso, destruímos, criamos, nos servimos deles, mas terminamos do mesmo jeito. Temos traços em comum com os bichos, mas nossa hipocrisia é tanta que acreditamos ser “donos” desse mundo, não somos donos de nada. Vendemos nossa liberdade, todos os dias.”
6)E você se considera um homem livre?
“Eu? Hahaha. Tento ser, mas não sou. Como pode ver, também vendo minhas coisas. Temos de nos adaptar, não dá para viver distante desse mundo, mas faço tudo do meu jeito, como quero, quando quero, as pessoas que se identificam elogiam, compram. Mas a liberdade está além de depender do dinheiro. Eu não uso relógio.”
7)Quer dizer que as pessoas tornaram-se escravas do tempo?
“Sim. Horário de acordar, de dormir, ir para a escola, de trabalhar. Interessante como nunca ouvi falar do horário de pensar por conta própria. Constroem um enorme sistema e te dão um relógio. Você não manda mais no seu tempo, nem na sua vida. Você se vende das 8 da manhã até o meio-dia. Come a sua ração e volta para se vender novamente até o final da tarde. Volta para casa, liga a televisão e só quer se distrair, livrar do cansaço dentro dessas paredes frias de concreto.”
8)E você acredita que em algum momento as pessoas possam “acordar” e mudar esse estilo de vida? Seria a “queda do sistema?”
“Não creio que isso aconteça com todo mundo. É algo que ocorre aos poucos. As pessoas se acostumaram ao luxo, à riqueza. Elas substituíram a terra vermelha pelo chão de cimento. Vão ocorrer mudanças sim, muitos vão acordar, mas existem pessoas, certas pessoas, que têm interesse em manter isso aqui como está. Elas lucram com a nossa mediocridade, seus filhos estudam no exterior enquanto os pais ficam aqui, mantendo o poder e contribuindo para empobrecer a nossa cultura.”
9)Quanto à educação, já freqüentou alguma escola? O que acha do ensino que é passado nos colégios e nas universidades?
“Quando era mais novo, moleque, eu fui à escola, fiz até a sétima série. Mas parei, era muito monótono. Não era pra mim. Nem sei como é hoje, mas no meu tempo e ainda acredito que ainda seja assim, o ensino é fraco. Os alunos são tratados como seres coletivos, e não individuais ou independentes, vejo isso até pelo uniforme. Dá uma impressão de todos seguirem as mesmas idéias, impostas por um professor e em geral copiadas de algum autor por aí. Nada se cria, é tudo copiado, me faz pensar: E as habilidades individuais? Onde ficam? É aí que o professor finge que ensina e o aluno faz de conta que aprende.”
10)Dá para perceber que muita gente ainda não chegou a essa maturidade, de entender a vida dessa forma, já pensou em escrever um livro?
“Sim, já estou escrevendo, cheguei até o capítulo 30. Vai ter o meu nome, Davi, que ao contrário também pode significar Vida. É uma das minhas missões, aprender e repassar. Mas ainda não sei quando ficará pronto.”
11)Sucesso com o livro! Além das andanças pelo país, o que mais você fez?
“Já trabalhei no circo também, era malabarista e também fazia o palhaço. Mas decidi seguir meu próprio caminho. Não gostava dos maus tratos aos animais, que por sinal existem até hoje.”
12) Como você acredita que o povo encara seu modo de vida?
“Ainda existe muito preconceito, muita gente olha torto e não se aproxima, acha que nós hippies somos bandidos, besteira, não é? Não somos mendigos, nunca pedimos nada, a rua é livre e temos o direito de trabalhar nela, de vender os nossos trabalhos. Nunca perturbamos ninguém, vivemos na nossa paz e é justamente isso o que pregamos. No Brasil, esse país gigante, não deviam nos julgar, somos uma mistura de povos, de raças, eu tenho origens do sangue lá da África, você parece ser europeu, estamos conversando agora, não é? É assim que deveria ser.”
13) Você tem alguma mensagem para mandar às outras pessoas?
“Eu quero que cada um descubra o seu caminho. Pode ser diferente do meu, isso não tem importância. Cada ser humano é um guerreiro. Tem que lutar por algo e sou feliz na minha busca pelo conhecimento, que cada pessoa possa encontrar essa felicidade, não pelo lado de fora, mas bem aqui, pelo lado de dentro.”