Por: Vinícius Silva
Jamais imaginei que um dia poderia me encontrar em tal situação.
Aliás, ninguém nunca se imagina. Não há nenhuma diferença nas técnicas quando se vê na TV ou nas reportagens, porém o impacto na realidade torna-se fator decisivo gerador de uma revolta coletiva. “Por que comemos carne?”
Esta foi a pergunta que me fiz e, se pudesse, perguntaria a todos que cultivam este hábito alimentar.
As pessoas não se preocupam em investigar a procedência de produtos e subprodutos que estão presentes no dia-a-dia e fazem parte da alimentação. Não foi diferente comigo, quando decidi visitar um frigorífico ou matadouro, como era chamado antigamente, aliás, um nome ideal. Não fui no sentido de conhecer processos, aprender, verificar ou supervisionar, mas simplesmente para a criação de uma pauta de reportagem.
A pauta já estava finalizada, mas todos os dados jornalísticos adquiridos através das fontes e a retranca “História Frigorífico”, não pareciam fazer sentido se o pauteiro não conhecesse de perto o que é e o que se faz em um frigorífico.
Devidamente equipado e autorizado, tive a oportunidade de acompanhar todas as etapas de abatimento de um bovino. Sejam fortes! É inacreditável, mas para algumas pessoas, o que vou contar é algo subjetivo e normal. Como para os funcionários e colaboradores que dizem ter se acostumado com o cotidiano sanguento.
Vacas e bois, que não sofrem distinção de sexo nessa etapa, chegam ainda de madrugada, “apertados” em um caminhão. Com toda a delicadeza que pode-se imaginar de um peão, os mesmos são conduzidos até um pasto cercado. Lá, têm a obrigação de comer e engordar durante alguns dias. Neste tempo, são cadastrados e registrados “a ferro e fogo”, literalmente.
É chegado o grande dia para um certo grupo de aproximadamente duzentos animais. São encaminhados por um árduo caminho, guiados por um outro peão que porta uma vara de aço, apenas para que tudo fique alinhado. Consegue perceber o eufemismo, caro leitor?
Durante o trajeto, os animais são beneficiados com uma ducha de água fria por todo o corpo. Segundo informações locais, depois é mais fácil para retirar o couro. A água que escorre no chão se junta com as fezes e urina dos animais que começam a ficar assustados e agressivos cada vez que uma porteira se fecha. É possível observá-los escorregando, caindo no chão, sendo pisoteados e chifrados. A falta de espaço, força-os a se organizarem em filas indianas. O caminho agora se torna íngrime. São cerca de doze metros de altura. O gado é observado pelo peão que fica ao lado numa plataforma de madeira paralela. Com seus gritos, tenta acelerar o processo.
Individualmente, cada animal chega ao ponto mais alto e é trancado em uma cabine, uma espécie de elevador ao ar livre.
Neste momento, descordei da Ciência, quando diz que apenas os homens são animais racionais, pois ao ver uma pistola de ar, revestida de ferro, pesando aproximadamente quatro quilos, vindo em sua direção, o animal prestes a ser abatido, se desespera e se debate por entre as grades do elevador e inicia uma série de mugidos. Estes sinais de socorro duram pouco até que o animal é acertado por três tiros de ar na cabeça. Uma morte rápida e pouco dolorosa? Talvez até fosse, se estivesse realmente morto e não desacordado.
A plataforma de madeira se estremece e balança com muita agitação. O animal é derrubado com toda força para outro piso. Dentro de segundos, é levado para outro setor, de cabeça para baixo, amarrado pelas patas traseiras, por uma corrente de ferro. É possível que os outros companheiros organizados consecutivamente, ainda na fila indiana, possam ver e escutar o que está acontecendo. Será que eles têm consciência de que serão os próximos?
Não estava autorizado a conversar com nenhum funcionário que estava
desempenhando alguma função para não atrapalhar ou desconcentrá-los, mas não tinha palavras, não emitia nenhum som, decidi que continuaria a acompanhar. Os sentimentos eram de piedade, culpa, omissão, ambição. Eram tantos. Desci depressa a plataforma e fui para o outro setor que ficava acoplado. Chegando lá, aquele mesmo animal que presenciei ser abatido já estava irreconhecível. O lugar é horrível, o cheiro insuportável, ainda suspensos pelas correntes, como roupas em um cabide, ficavam girando em volta de uma plataforma onde ficam alguns funcionários. Cada qual com sua função.
O primeiro é responsável por matar o animal com um corte de faca certeiro na jugular. O animal ainda continua desacordado. Dizem que ele não sente a dor da sangria. Embaixo da plataforma, observo um recipiente de alvenaria que lembra um córrego, onde todo o sangue é despejado. Um verdadeiro rio vermelho. Há todo o tempo um funcionário, com uma mangueira, tenta limpar com água o chão, mas é impossível. O sangue está em todo o lugar, nas mãos, nas toucas, nas roupas, nas facas, nos funcionários, em mim, sim, em mim. O segundo funcionário é responsável por cortar todas as patas, língua e cabeça. O terceiro é o tirador de couro. A partir deste momento, uma série de pessoas trabalham individualmente para a desfiguração total daquele animal estereotipado nas cores preta e branca, que habita fazendas e regiões rurais.
Os processos continuam. O “corpo” do animal é cortado, higienizado, vaporizado. Ainda há a ação de dispansadores (responsáveis por tirar tudo o que existe dentro do animal, tudo mesmo) e alguns cortadores que, com suas facas afiadas, vão cortando carnes e gorduras desnecessárias. As vísceras e miúdos são encaminhados através de tubulações internas que chegam a outros setores especializados. Acompanhando a finalização do abatimento, conheci setores horríveis, como o depósito, onde são armazenados os restos não aproveitados e onde há a carvoaria, local onde são queimados os ossos que voltam dos açougues.
Ao final, são várias “peças”. Estão irreconhecíveis, cortadas, despedaçadas, em uma grande câmara fria, aguardando os caminhões para carregá-las e transportá-las pela cidade para abastecer supermercados e açougues.
Estava crente que aquelas duas horas que passei ali seriam as mais emocionantes que já vivi, porém algo ainda estava por vir. Observei que alguns funcionários que rodavam turno, lancham salgados que continham carne em sua composição. Ainda portando os uniformes sujos e ensanguentados, como conseguiam ter estômago para aquilo?
Cheguei em casa indignado, surpreso, assustado, revoltado. Comecei a digitar e diagramar minha pauta. Já passava do meio-dia, fui almoçar e o cardápio, era o de sempre, o típico prato brasileiro: arroz, feijão, salada e CAAAAAARNE!